domingo, 30 de agosto de 2009

dot

Estou vazio, rigorosamente vazio dessa possibilidade
tão feliz que é ser delicado, que é olhar para
as coisas com beleza e senti-las desse modo, porque
tudo em mim está cinzento dentro e a doer
como um irremovível tumor a apodrecer-me as
vísceras. Estou vazio e não tenho outra realidade
mais clara e nítida, tão vertical e concreta. Sou
um horizonte que já foi, a solidão funérea de um
caminho que ninguém percorre e tão desprezível
me é essa maneira de viver que não há para ela
senão uma forma desprezível de morrer: acobar-
damente fraco, infalivelmente demente.
(WHITE, 1996, p. 59/60)

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

O Medo de Amar é o Medo de Ser Livre

O medo de amar é o medo de ser
Livre para o que der e vier
Livre para sempre estar onde o justo estiver
O medo de amar é o medo de ter
De a todo momento escolher
Com acerto e precisão a melhor direção
O sol levantou mais cedo e quis
Em nossa casa fechada entrar
Prá ficar
O medo de amar é não arriscar
Esperando que façam por nós
O que é nosso dever: recusar o poder
O sol levantou mais cedo e cegou
O medo nos olhos de quem foi ver
Tanta luz!

(Elis Regina)

domingo, 23 de agosto de 2009

Vento de Maio

VENTO DE MAIO (Elis Regina)

Vento de raio
Rainha de maio
Estrela cadente

Chegou de repente
O fim da viagem
Agora já não dá mais
Pra voltar atrás

Rainha de maio
Valeu o teu pique
Apenas para chover
No meu pique-nique

Assim meu sapato
Coberto de barro
Apenas pra não parar
Nem voltar atrás

Rainha de maio
Valeu a viagem
Agora já não dá mais...

Nisso eu escuto no rádio do carro a nossa canção
(Vento solar e estrelas do mar)
Sol girassol e meus olhos ardendo de tanto cigarro
E quase que eu me esqueci que o tempo não pára nem vai esperar

Vento de maio
Rainha dos raios de sol
Vá no teu pique
Estrela cadente até nunca mais
Não te maltrates
Nem tentes voltar o que não tem mais vez

Nem lembro teu nome nem sei
Estrela qualquer lá no fundo do mar
Vento de maio rainha dos raios de sol

Rainha de maio valeu o teu pique
Apenas para chover no meu pique-nique
Assim meu sapato coberto de barro
Apenas pra não parar nem voltar atrás

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Vertigem (sketch)

Nunca fiz isso antes, e queria exercitar diálogo.
Inspirei-me um pouco nos textos que tenho lido e quis brincar um pouco de escrever uma peça. A ideia é de duas pessoas atormentadas que se perdem em muitos assuntos e questões do passado. Então não quis seguir uma linearidade do tema... Alias, nem quis seguir um tema específico. Queria muito que comentassem todo tipo de observação e crítica. E que sejam bem sinceros, i can handle.
ps: me responsabilizo por tudo o que for escrito daqui pra frente, hehe. Comentem, por favor! (também me responsabilizo por erros gramaticais, paciência)


VERTIGEM
SKETCH

CENA: Um café em uma cidade metropolitana. Dois amigos, um homem e uma mulher, muito agitados, conversam no canto de uma das mesas. Deve ser interpretada como se já estivessem ali conversando e o assunto já começado. A moça tomava um expresso e o rapaz um capuccino italiano e fumava um cigarro. Há apenas uma mesa no palco, com as cadeiras e seus respectivos objetos.

MOÇA: ...Mas ele estava com tantas coisas pra fazer! Tantas coisas para ler, escrever, compor, ouvir, sonhar...

RAPAZ: Entendo. Do jeito que você fala, é como se ele se perdesse com tantas possibilidades.

MOÇA: Talvez. Mas deixemos isso de lado. Foi legal, encontrei-o em um momento bem produtivo. Acabou que fiquei inspirada também, foi bem divertido!

RAPAZ: Gostaria de ser menos cético. Queria conseguir me perder assim...

MOÇA: Tive que insistir muito para conseguir um momento legal pra conversar. Imagine. Mas sobre o que estamos discutindo?

RAPAZ: Sobre coisas diferentes. Na dinâmica louca, na reciprocidade, na troca! Que tal?

MOÇA: Não, é mais do que isso. Acho que é porque eu fico muito emocionada quando me encontro com pessoas assim. Eu não me sinto tão só...

RAPAZ: Ah já sei. Você também está perdida?

MOÇA: Que absurdo. Eu, perdida! Olhe só. Eu! Eu! Sai dessa. Não mesmo, que nada.

(risadas)

RAPAZ: De onde veio isso? (olha pros lados)

MOÇA: (angustiada) Acho que da tevê. (olhando pros lados no café, chateada)

RAPAZ: O que foi? (preocupação)

MOÇA: (desconversando) ...E-eu não gosto de televisões em lugares como cafés ou restaurantes. É muito chato. Mas então, voltando ao assunto... (interrompida)

RAPAZ: Eu conheci uma pessoa assim também. E, enquanto isso, estou mais preocupado com o fato de que tenho que encomendar uma cama nova. Imagine, uma cama nova, quero minha cama quentinha. Fazer o que?

MOÇA: Sei lá. Com o tempo ela esquenta de novo. (suspira)

RAPAZ: Não! Não dá, eu quero a cama quebrada e quentinha. Não sei se consigo esquentar coisas novas, duras e com cheiro de plástico. Tenho medo de coisas novas, duras e com cheiro de plástico.

MOÇA: Plástico cheira melhor que muita coisa.

RAPAZ: Pare de estragar a poesia da coisa. Não percebeu o valor simbólico que atribuí e estou querendo transmitir? Que coisa, viu...

MOÇA: Acho que também sou meio cética. Sério, camas não são interessantes.

RAPAZ: Cara... não, você não é cética.

MOÇA: Claro que sou!

RAPAZ: Não, você não é.

MOÇA: Cara... veja só, eu não fico pensando em esquentar camas.

RAPAZ: Cê não tá sacando. Eu sou o cara mais desacreditado da vida perto de você. Você vê um valor até nas entrelinhas do plástico!

MOÇA: Que nada! Mentira, nada disso, nunca! Não vamos concordar. E por mais que você diga que é desacreditado, é todo perdidão também.

RAPAZ: Eu gostei do também. Porque você também se inclui nisso. Preste atenção.

MOÇA: Veja, é sério, não estou perdida. Que coisa.

(ouve-se o barulho de uma porta abrindo. os dois olham para a direita.)

MOÇA: Ai meu deus. Estou com a Vertigem, com a Vertigem!

RAPAZ: Calma, não esquenta, relaxa que ela passa sem te notar. Assopra, assopra.

MOÇA: Estou ouvindo os violinos, juro que consigo ouví-los! Não estou me sentindo bem... tá tudo voltando, consigo ver os lírios, os cactos, as orquídeas, a entrada pro cinema, a ponte, a grama, o chalé, o vinho, o violão canhoto, ai meu deus...

RAPAZ: Calma que você vai cair! Não faça isso, não faz, não faz!

Vertigem: Oi gente!

(a Moça se levanta no mesmo momento e abraça a Vertigem. O Rapaz observa a cena, perplexo)

MOÇA: Aaaah! Eu tava sentindo tanto sua falta. Ah minha querida, onde você tava? Tenho tanta coisa pra te contar.

(o Rapaz cobre a testa e os olhos com as mãos e abaixa a cabeça)

Vertigem: Posso me sentar?

(o Rapaz e a Moça se entreolham. Ele parece aborrecido, e ela, resignada)

MOÇA: (cabisbaixa e vacilante) ... claro.

RAPAZ: Olha, desculpa interromper. Preciso ir.

Vertigem: Sério?

MOÇA: Então... tudo bem. Até a próxima...

(O rapaz sai de cena, correndo)

MOÇA: (falando sozinha) Aaaah, cafezinho, barquinho, filme, sábado de manhã, bossa nova, chico buarque, papagaio, pirata, docinho, carinho...

Vertigem: Eu sei que você sabe. Você quer cair em mim! Vem, cai! Cai!

MOÇA: ... chinelo, vinho, travesseiro, colchão, barraca, cabana, viagem, saudade...

Vertigem: Cai, cai...

(a moça começa a se entregar nos braços da Vertigem, que a aperta contra o peito)

MOÇA: o sono, o atraso, o caminhar, as poesias, a angústia...

Vertigem: Mais um pouco...

MOÇA: o Medo... lembra dele?

Vertigem: Claro, gente boa.

(o Rapaz entra correndo com uma arma, ofegante)

RAPAZ: Você sabe, não sabe!? Sabe sim, sabe sim. Que ta fazendo isso sozinha! Não vai conseguir se levantar. Ela não vai te ajudar.

Vertigem: Alguem te chamou? Saia!

MOÇA: O vento, a chuva, a dist...

RAPAZ: (interrompe) Eu admito, eu estou perdido, estou perdido! Eu acredito, eu sonho, eu tenho medo, eu sinto, eu amo, eu espero, não estou lúcido e nem sequer consigo dormir!

Vertigem: Ah, de novo não. Já nos conhecemos?

(Ele atira na Vertigem. A moça olha para o rapaz e se recompõe)

MOÇA: Olha, que legal. O que você tem feito ultimamente? (senta-se se novo na mesa)

RAPAZ: (assustado) Eu... Tantas coisas para ler, escrever, compor, ouvir, sonhar...

MOÇA: Que legal, que legal... Desde quando está aqui?

RAPAZ: Acabei de chegar. Sabia que aquela cama quebrou? Preciso de uma nova, me ajuda a comprar?

MOÇA: Sim, deixa só eu pedir meu café.

(Trevas)

Voz: Nada, absolutamente nada. Sem sentido, vazio, fim.

(ai coragem cretina de postar essas coisas aqui)

terça-feira, 18 de agosto de 2009

círculo

Não que estivesse tentando enganar a si mesmo. Não podia, não dava, tinha vergonha. Olhava para os lados e tudo o que estava ao seu redor parecia etéreo. Alguns objetos, alguns signos e substantivos abstratos, que antes tinham um valor incalculável, agora mais pareciam bugigangas. Artefatos para deixá-lo lúcido de seu objetivo. Coisas que o deixavam pleno de seu desejo.
"Você tem que fazer isso, continue fazendo, não pode parar"
Era isso o que costumavam dizer. E estava presente em qualquer lugar.
Mas agora, tudo lhe parecia tão falso, que para alguem que precisava de simbolos, objetos para se sentir motivado, via-se como um verdadeiro estrangeiro. Como se não pertencesse àquele lugar.
E estando sozinho, sua angústia tapava qualquer visão para outros valores. O que poderia fazer? Nem seu corpo o obedecia mais...
Passou então a desejar coisas as quais não poderia alcançar. Objetos de fuga.
Logo percebeu o quando sua existência era frágil. E como podia desistir tão fácil.
Até que...

"Aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos, não por ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
Quando terá sido o óbvio."


Lembrou-se do que estava precisando. Aliviou-se.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

sem dó nem piedade

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que "descanso" me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.

... Por que não posso
Pontilhar de inocência e poesia
Ossos, sangue, carne, o agora
E tudo isso em nós que se fará disforme?

(Hilda Hilst)

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

A Partida

Olhou para cima: lá estava o céu.
Era fim de tarde de domingo e ventava bastante. Tudo se alaranjava, assim como sua pele morena. Respirou fundo e pensou se era mesmo sábio ter certeza, quando a única coisa certa que se sabe é que tudo vai mudar, todo dia, toda hora. Inclusive sua escolha.
Então pensou: até as certezas mudam.
Tinha cortado o cabelo naquele dia. Ela dizia que gostava dele grande, mas quis mudar. Cortou mesmo assim.
O pouco da luz poente que ainda restava iluminou seus braços e sua nuca, agora descoberta, e ele brilhou feito cobre. Um avião passava e dava para ouvir o barulho se aproximando, depois diminuindo.
Notou o avião passar, depois olhou para o relógio.
Cinco e quinze.
Logo então reparou que era naquele voo mesmo. Ela estava nele.
O avião se foi junto com o sol.
E o sol parou de refletir na pele a sua luz.
Promete que não corta o cabelo?”
O vento soprava ainda mais forte.
Diz que nunca vai me esquecer
As estrelas começaram a aparecer.
Prometa que nunca vai mudar
O céu ficou escuro. Tudo girava...

Diz que não vai parar de sonhar

Então, finalmente, ele acordou.
Olhou para cima: lá estava o teto. Laranja.
Passou as mãos no cabelo como estava acostumado a fazer quando ele ainda estava comprido.
Deu-se conta então de que realmente tinha cortado.